Mirene.



Há coisas guardadas em nós que vêm nem sabemos como. Nós até podemos achar que é do nada, que vêm. Mas não será bem assim. Aconteceu comigo, ao olhar muitas pescadas numa banca de peixe. Ordenadas, bem-comportadas. Aconteceu ver à frente, depois de me lembrar de coisas que vinham de trás. Aconteceu imaginar medalhões de pescada. Gratinados no forno. Com um toque de maionese e mostarda. Não sabia bem de onde é que vinha a parte da maionese com mostarda. Não costuma ser óbvio, nos meus gratinados. Mas depois lembrei-me de onde é que vinha. Dos livros de cozinha da minha mãe. De um em particular. O Tesouro das Cozinheiras, de uma senhora que tinha um nome abreviado, Mirene. Ali, havia sempre coisas assim. Poucas imagens. Muitas receitas. Algumas longas. Outras mais breves. Mas a sério. Por ser uma cozinha sem pretensões. Assim real. Assim virada para as diferentes possibilidades que um mesmo ingrediente pode encerrar. Como uma pescada fresca.

Pescada gratinada com maionese e mostarda

1 pescada (grande) + 1 cebola + 1 talo de aipo + 1/4 de 1 pimento vermelho + sumo de meio limão, sal e azeite q.b.

Para o molho:

1 colher (de sopa) de Maizena + meia chávena de leite + 3 colheres (de sopa) de maionese + 2 colheres (de sobremesa) de mostarda + cebolinho, pimenta preta e sal q.b.

Dispõe-se os medalhões (uma pescada com um tamanho razoável dá para uns oito) num pirex. Tempera-se com sal e limão e reserva-se. Entretanto, pica-se a cebola, o aipo e o pimento. Espalha-se por cima dos medalhões e acrescenta-se um fio de azeite. Vai ao forno durante vinte minutos. Decorrido este tempo, passa-se o molho que resultou da ida ao forno, para um tacho pequeno. Numa chávena, dissolve-se a Maizena na chávena de leite. Junta-se ao líquido quente do tacho e mexe-se de imediato. Acrescenta-se depois a maionese e a mostarda e mistura-se com cuidado. Quando o molho estiver bem "ligado", tempera-se com a pimenta, o sal e o cebolinho picado. Cobre-se os medalhões de pescada e vai ao forno a gratinar (uns quinze minutos). A acompanhar, arroz branco e legumes desta altura do ano.

E está. A pescada gratinada com um toque de mostarda. Inspirada num livro que parecia estar arrumado na memória. E não. Hoje ocorreu-me que nunca vi o rosto da tal Dª Mirene. O livro era azul-escuro com letras douradas. E só tinha o nome curtinho. Também com letras douradas. Mas nada de rosto. A minha imagem mental sempre foi muito nebulosa. Mas era assim. A Dª Mirene seria de estatura média. Usaria quase sempre um twin-set em tons pastel e uma saia pelo joelho nos mesmos tons. Um colar de pérolas e as unhas pintadas de vermelho. Nas poucas imagens em que se vê qualquer coisa daquilo que ela era, as mãos apareciam sempre muito bem arranjadas. E com as unhas pintadas de vermelho. Não sei mais nada da Dª Mirene. Nem sequer se ainda vive. Sei que sempre gostei muito do Tesouro das Cozinheiras, que achava piada à ideia de as cozinheiras poderem ser donas de um tesouro. E até que sim.

Para a senhora que escreveu um tesouro. Com letras grandes, O Tesouro das Cozinheiras. Pequeninas de humildes, as letras do nome dela. Mirene.

13 comentários:

  1. Olá Mar,
    Por vezes temos memórias escondidas e basta um pequeno motivo, ou uma imagem mas que nos lembremos delas. Não conhecia esse livro mas gostei muito da receita. Ao contrário de muitas pessoas gosto muito de pescada e a sua está com ótimo aspeto. Esse prato pede bom tempo!
    As memórias de infância e adolescência são um grande tesouro que nós guardamos e é tão gratificante quando nos lembramos delas!
    Uma boa semana para si.
    Graça

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  2. Professorinha, desculpe lá qualquer coisinha da aula : ) Disse-lhe que tinha um blog, aqui vai o link !

    - luisfigueiredoo.tumblr.com

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  3. Que linda a tua pescada escondida em molho de veludo ;) Muito poética a imagem que associas à D.ª Mirene. Talvez tenha sido mesmo assim, quem sabe... E o prato azul, com o prato de legumes ao lado: lindos. Deve ter ficado mesmo boa, esta vossa refeição.
    Um beijo. E boa sorte com a tarte.
    (Muito romântica, a tua inclusão dos espargos só porque o Vasco gosta).
    Babette

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  4. Olá Graça:

    Acontece assim. Uma pequena coisa, imperceptível e ligeira. Neste caso, um livro. Que recordo como sendo pesado. Muitas páginas, que tinha. Tivesse tido tempo e teria ido a casa dos meus pais. Para o rever. Ou reler um bocadinho.
    E acho que eu era como as outras pessoas. Não gostava assim muito de pescada. Mas tenho feito algumas incursões felizes. Esta muito especialmente, que foi tão gostada. O meu marido deliciou-se. Com pescada:) E sim, a somar às coisas boas, este é mesmo um prato que pede bom tempo. E conseguiu, pelos vistos, que esteve um sol muito brilhante.

    Dias lindos para si.

    Mar

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  5. Olá Luís:

    Está tudo bem. Mas vê se percebes o meu ponto: não gosto de confundir as coisas. O que significa que não pode voltar a acontecer a referência ao meu blog a meio de uma aula. Por algum motivo tenho mantido esta dimensão fora daquele espaço. Não por nenhuma espécie de constrangimento ou pudor. Para todos os efeitos, este lugar virtual é acessível, não está vedado nem é secreto. Gosto que leias, mas quero manter isto fora das aulas. Quando tiveres dúvidas, vem ler o que estou a escrever. Que é para não te esqueceres.
    Obrigada por partilhares o teu espaço virtual. Vou ver, daqui a pouco.
    E está tudo bem. Fica em paz. Mas não gostei nem um pouco que tenhas mencionado isto enquanto estávamos na aula. Que não se repita. Uma aula é um espaço sagrado. E irrepetível. Já devias saber como funcionam as coisas com a tua "professorinha":)

    Até amanhã, então.

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  6. Olá minha linda:

    Já depois da tarte que publicaste hoje:) Ficou muito bem. Admito que o Vasco gostou mais do que eu. Está certo, assim. A tarte era um presente de um dia normal. E vinda de ti. E também admito que os espargos da minha fatia foram postos de lado. Não consigo. Um atavismo como outro qualquer.
    Falámos desta pescada, ao almoço. Também me ocorreu que poderias gostar da introdução da mostarda. Ficou muito suave. Muito aromática.
    Pode ser que sim, que a minha Dª Mirene seja (ou tenha sido) assim como a imagino desde aquelas páginas cheias de receitas.

    Obrigada por teres gostado. E um beijo.

    Mar

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  7. Olá Mar,

    Em casa da minhã mãe existe um exemplar desse livro, tantas e tantas vezes folheado. Tantas receitas testadas umas com mais sucesso do que outras. E sim uma cozinha cozinha real sem pretensões. E agora deixou-me com uma vontade enorme de procurar a receita da "sua" pescada e testa-la.

    Um beijo com carinho.

    Íris

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  8. Olá, Mar.
    Não conheço o livro de que falas. Mas, no meu imaginário, tenho uma imagem muito semelhante à tua da Dª. Mirene. A da Laura Santos, d'A mulher na sala e na cozinha. Imagino-a tal como a tua descrição. Twin set, tons pastel, pérolas. Aquela imagem típica dos anos 50, 60. Acrescento, apenas, um cabelo muito armado, com muita laca :)
    Gostei muito da tua pescada, com o esse molho aveludado.
    Um beijo

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  9. Olá Íris:

    Não sei se encontrará a receita assim como eu a deixei aqui. Esta versão resultou de várias desse livro. Lembrei-me de umas possibilidades com pescada que implicavam maionese. E ocorreu-me juntar mostarda e outras coisas.
    Gosto que esse livro também tenha sido folheado por si. E experimentado, de vivido.

    Um beijo.

    Mar

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  10. Sabes que nunca abri esse livro? Tenho um problema sério com o título:) Na sala e na cozinha. Mas já ouvi muitas referências boas a propósito. Estás a ver como aquilo dos julgamentos com base em impressões também se aplica aqui? Como não gosto da capa e das palavras da capa, não abro para ver se gosto. Vou tentar. Depois de te ler, vou tentar. Obrigada por isso. E pela coincidência do nosso imaginário das senhoras dos livros de receitas antigos:)

    Um beijo.

    Mar

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  11. Bom dia Mar :) Sou a Cristina e tenho um blog que se chama Ovo Estrelado. Hoje publiquei esta receitinha que tanto gostei e que me fez reviver certos paladares de outros tempos e que ficaram perdidos por aí . Gostei muito, obrigado;)

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  12. Ana
    Olá
    Numa das versões mais antigas do Tesouro das Cozinheiras na página das medidas/equivalências não menciona quanto é uma chavena de (chá) de manteiga em gramas, e eu queria fazer uma receita desse livro e não posso. Se alguem tiver uma versão mais recente desse livro e me souber dizer agradecia muito.
    Ana

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  13. Que memórias boas da infância me traz o livro da mirene...
    Que tristeza ter perdido uma caixa, numa mudança de casa, onde estava o tesouro!

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