Nem nunca. Nem sempre.



















Há dias ouvi isto. Nem nunca. Nem sempre. Como não estava em circunstância de registar no meu caderno pequeno, fui repetindo mentalmente. Nem nunca nem sempre nem nunca nem sempre. Um corredor silencioso. Depois escadas. Mais um corredor silencioso. E creio que aconteceu o inevitável, enquanto ia dizendo as palavras por dentro. Guardei-as. E pensei nelas. Muito. Não foram embora. Não me esqueci, depois de as escrever finalmente. Fui pensando em todos os meus sempre. Em todos os meus nunca. E a esses acrescentei os para sempre. E os nunca mais. Depois, cheguei à conclusão de que os para sempre e os nunca mais é que são perigosos. Porque obrigam. Implicam consequências. Pressupõem fazer os (im)possíveis por ou deixar cair e isso ser uma ferida que não se fecha. Clausuras. Labirintos. Paredes que inventamos como intransponíveis. As palavras não são (mesmo) matéria porosa. O sempre e o nunca podem ser transformados só em coisas boas, se assim quisermos. Basta dar voltas às palavras e colá-las a tudo o que queremos que seja sempre e a tudo o que não queremos nunca. Bem sei que a vida é que dá as voltas à séria e que troca as voltas muitas vezes. Mas querer não faz mal nenhum. O mal é sermos prisioneiros. 
Isto do sempre e do nunca presta-se mesmo a pensar a comida e as suas derivações. No meu caso, começa por isto: sempre (lá está a palavra:) pensei que não tinha paciência nem talento para fazer massas. Farinha por todo o lado. Mãos a colar. A minha impaciência a fazer caminho e uns minutos depois, dava por adquirido que aquela cena não era a minha cena. Lavava as mãos e esquecia o assunto massas para tartes e outras coisas de que as pessoas que gostam de fazer comida gostam. O imaginário associado à cozinha também está cheio de falácias. E de muitas histórias. Lá está, declinações do nunca e do sempre a funcionar. Outra irritação tinha que ver com a manteiga nas receitas de bases para tartes. Muita, quase sempre. E temperamental, a obedecer a procedimentos. Eu gosto que as coisas sejam simples e sem muitos parágrafos, porque a vida já está demasiado cheia de complicações e de parágrafos. Basta esse imponderável enorme, creio.
Por isso, quando num dia de muito calor no Verão passado, me apeteceu sem mais fazer uma tarte de cebola, com uma base que tivesse azeite em vez de manteiga, foi inevitável lembrar-me de todas as vezes em que me zanguei com este universo de farinhas e assim. Queria tentar replicar uma receita que trouxe de uma viagem a Maiorca. Ao miolo rural da ilha. Um lugar tranquilo e muito distante da contaminação perversa que estragou muito. Deram-me a provar uma tarte de cebola que, para mim, permaneceu como a memória daquele lugar. A comida pode ser/dizer a alma de um sítio. O sol doce de Maiorca. Os ocres e os verdes secos. As pedras quentes das ruas. O espírito livre e ligeiramente utópico das pessoas. Tudo isso numa fatia de tarte de cebola. E sem lastro do sabor (excessivo) a manteiga. Ficou-me na ideia. E aqui está. Depois de a fazer muitas e muitas vezes. Bem posterior ao jantar de Verão em que a servi pela primeira vez. Feliz, por ter ultrapassado as minhas questões com isto de fazer massas para tartes. Depois de se ter tornado uma das entradas preferidas do meu filho. Bem no tempo e a tempo das cebolas novas. E com imagens de agora, da Primavera na serra, a caminho da aldeia da Pena. Todos os anos renasce mais bela. E o tanto que isso diz. Sempre, a beleza mágica das montanhas que se renovam, que encontram um sentido para o tempo que passa. Tão bom que isto tudo seja aqui. Tão bom que estas cores todas estejam a acontecer aqui perto. Com aquele poder silencioso dos grandes espaços. Tal e qual como com os livros. 
Para mim, os livros são também grandes espaços. Todas as noites. Depois de todos os ruídos. Depois de todas as coisas e sítios e pessoas. Sempre o livro que estiver a ler. Para esta página, este livro. Tive a sensação de estar sempre a tentar compreender discursos e narrativas que foram concebidos para não serem compreendidos inteiramente (seja lá o que isso for). Senti um pouco do que senti quando li os simbolistas pela primeira vez, algures aos dezassete anos. Metáforas e imagens e símbolos. Uma visão satírica do imaginário dos parques de diversões e isso ser uma fuga calculada e circunscrita a uma realidade da qual não se consegue (ou não se quer) escapar. Um enorme e labiríntico parque temático, algumas vidas. Para prevenir, é melhor dizer que, se se ultrapassar o primeiro capítulo, está tudo bem e vamos conseguir chegar à última página:) Deixo este texto sobre. Gostava de deixar em português. E lamento. Mas só encontrei um texto muito breve e muito preguiçoso que não justifica a ligação. Uma coisa que justifica é o vinho que fica com esta comida que vai bem com brancos ou com tintos. E sim, fica maravilhosa com espargos grelhados. Há coisas que parecem ter nascido umas para as outras. 

Tarte de cebola, bacon e pinhões 
NB: A versão vegetariana desta tarte é igualmente deliciosa. Basta omitir o bacon. E pode ser servida quente ou fria, que vai correr bem das duas maneiras. 

Para a massa:
300g de farinha + 3 ovos inteiros + 1 gema para pincelar + 4 colheres (de sopa) de azeite + meio copo de água morna + sal q.b. 

Para o recheio:
4 cebolas (médias) + 150g de bacon + sal, azeite, vinagre de arroz e pinhões q.b. 

Numa taça, coloca-se a farinha e abre-se um espaço no meio. Aí, coloca-se os ingredientes restantes. Vai-se trabalhando com as mãos passadas por farinha. Basta uns cinco minutos, até que as mãos fiquem sem colar e até que a massa esteja maleável. Faz-se uma bola (ou um coração:), envolve-se com película aderente e deixa-se descansar durante meia hora (pelo menos). Depois, é só estender com a ajuda de um rolo da massa, forrar uma forma, picar com um garfo, pincelar as margens com gema e levar ao forno durante cinco minutos. Decorrido esse tempo, retira-se e cobre-se com a cebola e com o bacon. Basta levar uma sertã ao lume, com um fio de azeite e o bacon cortado em cubos pequenos. Deixa-se estar durante uns dois minutos, acrescenta-se a cebola, um pouco de sal e vinagre de arroz e envolve-se. Quando ficar translúcida, retira-se do lume e coloca-se por cima da massa. Vai ao forno a 180ºC, durante cerca de 15 minutos. Pouco antes de servir, pinhões levemente tostados numa sertã seca. 

A música é dos Kings of Leon. Waste a moment. 

2 comentários:

  1. Querida Mar,

    Partilho da mesma questão em relação às massas. Mas quando vi a imagem desta tarte soube que não iria resistir:) Já fiz, com direito a um valente corte num dedo, que fiz batota e utilizei o processador de alimentos:) mas ficou tão boa que até já teve direito a ser pedida de novo:)Obrigada pela partilha.

    Beijinhos

    Íris

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    Respostas
    1. Olá querida Íris,

      O corte não fazia parte da receita:) Espero que já tenha recuperado. Fico muito feliz por saber que fez esta tarte, que gostou e que já foi pedida outra vez. Por aqui, acontece também isso. Uma das (muitas) alegrias da comida é essa. E é tão bom saber que é uma alegria que está sempre ao nosso alcance. Obrigada eu.

      Um beijinho grande*

      Mar

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