Água. Luz. Tempo.





























Lagos. A luz muito fresca de Lagos. As ruas antigas e quentes que sei de coração. As casas brancas e de outras cores-luz. Todas as coisas breves e inesperadas da cidade que ama os artistas e os insatisfeitos que partiram em busca do mar inteiro. Nas ruas de Lagos, há sempre qualquer coisa que está e que não estava antes. Uma ruína pode ser um lugar imprevisto de contemplação. Uma árvore pode ter inscrições enigmáticas e teias incompreensíveis. Do nada, ouve-se uma melodia qualquer que nos faz seguir por uma rua e depois por outra. E água fresca em pontos aleatórios da cidade. Sombra, depois sol. Sol, depois sombra. E o meu caminho da manhã em direcção ao mercado, com a alcofa de sempre pelo braço e uma luz leve pelos ombros. Sempre esse caminho dos dias em Lagos. Umas vezes junto à água. Outras por dentro da cidade. E sempre, sempre, como se um vento qualquer me levasse ao destino. Procuro fazê-lo como vivo a minha vida: a sentir muito cada passo. Temos todos uma cartografia íntima e intransmissível. Composta de memórias que são lugares, pessoas, momentos breves e ínfimos. Nem todos os pontos desse mapa interior são bons, gratos de lembrar. Faz parte do caminho. Mas que nenhum desses pontos difíceis de caminho nos impeça de viver bem os outros. Os pontos tecidos de luz e de alegria e de bom retorno. O ponto fundamental estará aí. 
À distância do regresso dos meus dias solares em Lagos e já depois de outras geografias, a memória aqui. A água pela manhã e ao final do dia. Nadar até cansar os braços e as pernas. A água boa que cansa o corpo e que leva tudo o que não é para ficar. Os meus caminhos pela cidade. Aquela agitação boa do Mercado do Levante, nos sábados de manhã. Comprar pão morno de torresmos ou filhós e ir comendo e circulando e parando. Bancas improvisadas ou mantas no chão, cheias de cores e de aromas das terras quentes dali. E a minha comida, mal chego a casa e pouso a alcofa que resiste a tantos anos de mercados e de deambulações. O pão denso do sul. A alma que vive num prato de tomate coração-de-boi cortado sem simetrias, salpicado com flor de sal e orégãos. Um fio de azeite final e está. As batatas algarvias. Deliciosamente imperfeitas, de simples. Os ovos mexidos com tomate e com orégãos. A base sagrada dos inícios de refeição é esta. O que vem a seguir é sempre ditado pelo que há no mercado, pelo que apetece. Na mesma página, também a memória dos jantares neste lugar que me é tanto e onde todos os anos me esperam os sorrisos de sempre e as mãos do Vila nas minhas mãos. Uma saudação silenciosa, esta das mãos que se encontram. Há momentos que não precisam mesmo de palavras. Que possa ser assim por muitos e muitos anos. 
E à noite, enquanto oiço o rumor do mar lá fora, as páginas do livro dos dias em Lagos. Estas foram as páginas. Tinha lido esta entrevista e uma vontade imediata do livro da escritora do Deus das Pequenas Coisas que li aos dezassete anos. Vinte anos depois, ela voltou a escrever. E como escreveu. Ácida e implacável com a corrupção, com uma certa política e com a lógica das castas na Índia. Comovente e magistral a descrever tudo aquilo que partilhamos enquanto pessoas: o amor, o medo, a coragem ou a falta dela, a vontade de justiça ou a indiferença. Dilacerante, quando escrever não pode ser outra coisa que não isso. E sim, não é chuva miudinha nem algodão doce. A vida não é assim e os (bons) livros lembram isso. Em alguns momentos, tive de parar de ler e vir cá fora ao terraço. Ouvir o mar lá ao fundo. Olhar as estrelas. Beber chá de hortelã bem fresco. Respirar fundo, ganhar alguma distância e continuar a ler. Livro difícil, mas cheio de fé. Por mais que a fé seja uma entidade volúvel e frágil. Estamos sempre na iminência de a perder e sempre a tempo de a recuperar. 

Lulas salteadas com vinagre e coentros

10 lulas (médias) + 5 dentes de alho (esmagados, com um pouco da casca) + sumo de metade de um limão + flor de sal, azeite, vinagre e coentros q.b. 

No mercado, pede-se para que as lulas sejam limpas e cortadas em rodelas com dois dedos de espessura e que os tentáculos sejam conservados inteiros. Em casa, passa-se por água fresca, escorre-se e transfere-se para uma taça. Salpica-se com um pouco de flor de sal e rega-se com sumo de limão. Deixa-se estar durante uma meia hora. Depois, numa sertã larga, um fio de azeite e as lulas. Quando começarem a libertar água, cobre-se e deixa-se estar durante uns vinte minutos (este tempo depende necessariamente do tamanho das lulas). Decorrido este tempo, retira-se as lulas para uma taça, conservando o líquido que permaneceu. Passa-se um pouco de papel de cozinha na sertã, um fio de azeite bem generoso e leva-se ao lume. Uns segundos depois, os alhos esmagados. Uns segundos depois, as lulas (sem a água onde cozinharam). Mexe-se e deixa-se saltear no azeite. Entretanto, junta-se umas três colheres (de sopa) da água de cozinhar e mexe-se novamente. Mais azeite, um pouco de vinagre e coentros picados no momento. Serve-se de imediato e com pão denso a acompanhar, por ser imprescindível aquela coisa boa de molhar o pão no molho delicioso que fica no prato. 

A música é dos First Breath After Coma. Um dos meus concertos (inesquecíveis) deste Verão foi o deles. 



4 comentários:

  1. Sempre tão bom ler os teus posts sobre Lagos. Transmitem paz. Fico feliz que tenhas descansado e aproveitado bem estes dias. Por aqui, os dias têm sido semelhantes. Muita água, muito sol, nadar até doerem os músculos 🙂
    Só a cozinha andou mais parada, que até para cozinhar andei com preguiça. Mas já retomei. Ontem andei a conservar figos 😉
    O livro da Arundhati Roy foi uma das leituras deste verão. Muito bom! É isso tudo que dizes.

    Um beijo e bom recomeço,

    Ilídia

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    1. Obrigada, minha querida. Tem de haver sempre um bocadinho da água e da luz de Lagos, aqui. O melhor do tempo de Verão é que nos pertence mais do que qualquer outro tempo. Pensei ainda mais nisso, nestas férias. De como o tempo é uma benção por si só.

      O meu recomeço é mais começo, que as coisas mudam e nós com elas. E isso é bom.

      Um beijinho grande e bom regresso!

      Mar

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  2. As cores e os sabores do Sul. Quase sinto o cheiro de terra e mar sob um sol fortes. Que bom. E que saudades de Lagos.
    Vou experimentar a sua receita de lulas. Um beijinho.

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    1. Estas imagens e todas as memórias do sul têm esse mesmo efeito, querida Ana. Bom que partilhe as saudades de Lagos. Que corra bem, a experiência:)

      Um beijinho grande*

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