Haja o que houver.

















A comida tem sempre vida dentro. Memórias. Sítios. Momentos. Pessoas. Creio que, mais do que tudo, pessoas. As pessoas que fazem a comida que nos marca. As pessoas que se sentam todas juntas a uma mesa. As pessoas que escolhem viver todas juntas um momento qualquer. Todas as receitas que deixo aqui têm sempre muita coisa dentro. Sedimentos de tempo, antes de serem uma página aqui. É preciso tempo, para isto. Experimentar as vezes que forem necessárias, até serem desnecessárias. Cruzar bem os temperos e as sequências. Errar, também. Deixar que as palavras tomem bem o gosto. Tal e qual o princípio do tempero, parece-me. E então, há receitas que demoram, até chegar aqui. Mesmo que as faça de olhos fechados. De coração. Sem precisar de medir ou de calibrar seja o que for. 
Esta é uma dessas receitas. E não consigo fazê-la sem me lembrar da minha família. Numerosa. Ruidosa. Imperfeita. Aquela alegria quente que só nós todos juntos. Risos e conversas e vozes de adolescentes, misturados com aquela coisa maravilhosa de haver também um bebé loirinho a ter o colo e o mimo de todos. Não há meio de haver uma mesa composta, organizada. Até que começa assim, a bem da verdade. Mas depois, a partir de um certo ponto de não-retorno, não há nada a fazer. Parecemos uma daquelas famílias dos filmes italianos em que todos falam alto e ao mesmo tempo:) E como eu amo esse caos onde estranhamente tudo faz sentido. Do nada, pode surgir uma questão qualquer que se debate intensamente, até que depois já não importa qual é o pensamento ou o fio ou até mesmo a questão, porque a mãe diz que se está à mesa e que não é para estarmos com coisas. Este é o tipo de comida que os evoca a todos. A nós. O nosso núcleo imperfeito. O lugar seguro onde podemos dizer todas as palavras. Ou palavra nenhuma, quando é para ser assim. Esta é comida de almoço de Domingo. Comida que fica a apurar sozinha, num tacho largo de ferro. Faço osso buco muitas vezes. Sempre da mesma maneira com inspiração em Itália. Com muito vinho tinto. E tomate. E Parmesão, acrescentado pouco antes de ser hora de servir e depois, quando tudo está consumado no prato. É uma daquelas coisas que faz parar o tempo. Um molho profundo, aromático, quente. Que diz muita coisa sem ser preciso dizer seja o que for. Tudo servido com loiça e com talheres que nos conhecem de há muito. Familiares. Constantes. Os objectos a que voltamos sempre. De que gostaremos sempre. Haja o que houver. 
Com a comida que faz parar o tempo, mais livros. Dos russos que leio sempre com uma sensação profunda de reconhecimento das dimensões mais diversas da nossa condição. Ninguém descreve os cínicos, os dilemas mais inconfessáveis como Dostoievski. Ninguém analisa a filigrana dos pensamentos dos que se questionam e dos que procuram conhecer-se interiormente como Tolstói. Quando me falam do Anna Karénina, a colocar a ênfase na Anna Karénina, sei que não leram o livro. Ela é lateral. Uma personagem que se afunda, que se perde sem grande história, sem brilho. É sobre o caminho interior de um homem chamado Lévin. Não é nada sobre a mulher que se atira para debaixo de um comboio em movimento. Geografia abençoada, que deu palavras destas ao mundo. A Rússia é um daqueles pontos de uma cartografia íntima e silenciosa. Um daqueles pontos. Fica este livro de Dostoiévski e a sensação de experimentarmos a vertigem dos que querem ganhar tudo e que tudo perdem. E as vezes que forem precisas dessa vertigem, até que tudo chegue ao fim. E um daqueles livros necessários. Este de Tolstói. Poucos escritores são capazes de tirar a máscara, de a pousar por uns momentos e de dizerem as coisas na temível primeira pessoa. Tolstói sim. E uma outra escritora que nunca tinha lido. Um livro enigmático, que parece feito de coordenadas. Fui sublinhando, para guardar melhor. Ou para mapear o caminho de volta. Não sei bem. Mas este livro foi uma solidão que atravessei como se caminhasse sozinha num campo coberto de neve. Os livros são sempre uma coisa a sós, creio. Nós e eles e um silêncio nosso. 
A comida, então. E este vinho que parece ter sido feito para comida desta. E os caracóis do meu sobrinho mais novo, que já faz parte da mesa e que vai experimentando as comidas. Uma educação preciosa e intransmissível, a da mesa. 

Osso buco dos almoços de Domingo

6 rodelas de osso buco + 2 cebolas vermelhas + 2 talos de aipo + 5 dentes de alho (picados, com um pouco da casca) + 3 colheres (de sopa) de molho inglês + 1 garrafa de vinho tinto + 1 lata deste tomate, que encontro aqui + 1 pacote de spaghetti + azeite, sal, pimenta preta, salsa e Parmesão q.b. 

No talho, é onde começa tudo. E aí, pede-se para que as rodelas/fatias sejam cortadas com dois dedos de espessura. Depois, a parte do tempero, preferencialmente de véspera. A enumeração toda que está acima, excepto o tomate, o Parmesão e a salsa, sendo que estes dois últimos se guardam para o final. 
Quando for a hora, acrescenta-se o tomate, leva-se ao lume num tacho largo e deixa-se que tudo aconteça. Lume forte, primeiro e brando, mal comece a ferver. Três horas disto, com alguma vigilância e alguns acrescentos de água, se entendermos necessário. Nos últimos minutos, quando a carne largou o osso mágico que confere (ainda mais) densidade a este molho, cerca de quatro pedaços de Parmesão. Mexe-se, até que se dissolvam. Rectifica-se os temperos, acrescentando-se sempre pimenta preta. 
À parte, coze-se spaghetti e, quando estiver cozido, usa-se uma colher para servir este tipo de massa e transfere-se directamente para o tacho onde está o osso buco. Este passo é importante, porque quando a massa é para ser servida nestes molhos, não deve ser escorrida, porque o amido é precioso para harmonizar tudo. Pode até acrescentar-se um pouco desta água de cozer, que não faz mal nenhum. Mistura-se tudo, transfere-se para uma terrina, se quisermos e serve-se. À mesa, deve haver Parmesão para ralar no momento e salsa picada na hora, para ir colocando nos pratos. E pão. Muito importante: deve haver pão. Este molho delicioso pede isso:) 

Para este post, uma das músicas dos Linda Martini. Esta, a fazer parte de um dos concertos inexplicáveis desta banda de que gosto (mesmo) muito. 


2 comentários:

  1. Bom dia Mar,

    Gostei do espírito: "no matter what".

    De facto.

    Por aqui também se tem vivido sob o signo da resiliência. O ano de 2017 deixou um rasto avassalador.

    Osso buco é algo que nunca provei.

    Um beijo do Algarve, com as amendoeiras em flôr.

    Sandra Martins

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    Respostas
    1. Olá Sandra,

      Esse espírito é mesmo do género de preservar. E, mais importante ainda: pensar em coisas que são/continuam "haja o que houver".

      Compreendo. Não perdoo a 2017 ter levado um dos meus amigos mais queridos, ter incendiado todos os meus lugares de infância. Entre outras coisas.

      Tem de provar, Sandra. Faz-nos agradecer (muito) à vida:)

      Um beijo para o Algarve. Bom fim-de-semana!

      Mar

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